domingo, 3 de maio de 2009

Xadrez vermelho


Era um dia comum de Junho, verão na Holanda. A rua tranqüila do bairro de Amsterdã onde eu trabalhava respirava sua calma habitual, pontuada pelos bondinhos que passavam de cinco em cinco minutos. Enquanto eu observava o movimento distraída, a caneta em minhas mãos caiu no chão atrás do balcão. Me abaixei para apanhá-la e não vi quando ele chegou. A loja estava vazia, escutei apenas o sininho da porta oscilando quando esta se abriu. O homem que entrara era alto e careca. Vestia um terno cinza com um chapéu na cabeça. Porém, a estrela amarela de exatas seis pontas na lapela denunciava-lhe a origem.

Olhando distraidamente para os objetos nas prateleiras sem demorar-se em nenhum, acabou por ficar frente a frente a mim. Antes que eu pudesse perguntar se poderia ajudá-lo, ele fixou o olhar decidido na estante exatamente atrás de mim e com um sorriso contido, pediu o caderno xadrez vermelho, último que restou na loja.
Eu me lembro exatamente do dia em que aquele carregamento de cadernos para diário chegou. Eram todos muito parecidos, quadradinhos, vermelhos. Porém, um chamou a minha atenção. Seria um caderno como os outros, se não fosse por um pequeno detalhe: seu fecho era simples, sem chave. Não sei porque me apeguei ao livrinho. Talvez porque me sentia como ele, naqueles tempos difíceis de 1942, um patinho diferente, fora do contexto. Sempre tive horror a guerras. E aquele era um caderninho diferente dos outros, que não guardaria segredo, não se calaria ante aos absurdos que aconteciam pelo país inteiro.

Pois bem, naquele momento em que vendi o caderninho para o homem da estrela no peito senti uma pontinha de dor pela separação. Não sei o que pensei na hora, mas quando ele pediu que embrulhasse pra presente, sem conseguir resistir, perguntei: “É para sua esposa?” Ele apenas sorriu contido mais uma vez e disse: “Para a minha filha caçula. Faz treze anos amanhã” Ahh, que saudade dos meus treze anos! “Ela gosta de escrever?” Novamente perguntei, precisava saber o destino do pequeno caderninho. “Sim” o homem respondeu “ela quer ser escritora ou jornalista”.

Depois que ele saiu, peguei-me imaginando o grande futuro que a aniversariante teria. Cresceria bem na companhia do livrinho e depois que acabasse a guerra, faria sucesso escrevendo sobre ela, narrando as tragédias sofridas pelo seu povo. Uma grande escritora. Uma grande jornalista, certamente. E aquele diário ficaria famoso. Os primeiros escritos de uma grande jornalista, no apogeu da Segunda Guerra Mundial. Eu a veria numa grande livraria, compraria um dos seus livros e a pediria que o autografasse para mim. E ficaria imensamente feliz em saber que eu vendi o seu primeiro diário.

Se naquela época eu soubesse o quando as coisas parecem tão mais bonitas quando as imaginamos... o diário ficou famoso, a autora ficou famosa. Eu só não imaginei que não ficaria feliz em saber o motivo pelo qual todo mundo hoje conhece aquele pequeno caderninho xadrez vermelho.

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