segunda-feira, 18 de maio de 2009

Ressaca

Eduardo levantou-se da cama naquela manhã de Novembro e calçou as pantufas de elefante. Caminhou até o banheiro e se olhou no espelho. A barba estava feita. Ele pensou se Maria gostaria dela assim. Escovou os dentes e depois usou um enxaguante bucal que comprara na noite anterior. Maria uma vez comentara que tinha um gosto bom. Fora difícil encontrar uma loja aberta para comprar o enxaguante. Naqueles dias, ninguém mais queria sair de casa ou abrir loja pra vender um cotonete que fosse. O comércio estava fechado por causa da chuva e do terror que tomou conta da população.

Era o fim do mundo, diziam os cientistas. E se os cientistas diziam, era certo. Ninguém ousaria discordar que as geleiras polares derreteram e o fim se aproximava cada vez mais, pelo céu e pelo mar. Em vão tentou-se construir abrigos, fortes e até arcas. Era pouco provável que suportassem a ira da chuva. A civilização ia submergir por completo e estava todo mundo desesperado. Quase todo mundo. Eduardo não ligava. Eduardo só ligava pra Maria. E Maria ultimamente não ligava muito pra Eduardo. Aliás, nem atendia quando ele ligava também. Teria Maria outra pessoa para quem ligar?

Não. Ela não podia ter outro. Sempre, desde sempre, para sempre tinham sido só eles. Não havia espaço para mais ninguém. Só Maria. E ele tentava perguntar “o que está acontecendo?”, “você está tão calada”, “você está tão distante” e “você não me ama mais?”. Nada. Maria tinha cólicas. Maria tinha trabalho. Maria tinha que se preocupar com os pais que, de tão apavorados, se mudaram para o iate da família.

Não. Não era isso. Ela tinha outro. Só podia ter outro. Eduardo tinha certeza de que ela o estava traindo. Só podia ser aquele ginecologista. Opa, era uma mulher. Ele estava sendo trocado por outra mulher! Maria, logo ela. Será? Será que ela tinha se mudado para o iate com o amante? Claro que sim, claro que fez. Maria o traíra. E todos sabiam. Todos. Mas isso não ficaria assim. Maria ia pagar caro.

Eduardo abriu a porta de casa e saiu sem guarda-chuva. A tempestade transformara a rua em caos e escuridão. Correu por algumas quadras pensando em Maria. Continuava a chover forte. Mais e mais. Imperdoável, Maria. A chuva aumentou rápido. Os trovões e os clarões ficaram mais intensos e freqüentes. Eduardo parou em frente a uma loja abandonada com a vitrine quebrada. Abrigo.

Ahh, Maria, Maria. Não faria tal crueldade. Tão meiga, tão doce, Maria.” Sem raciocinar, passou pelo buraco no vidro e cortou fundo a perna esquerda. Dor. Que dor poderia ser maior que essa, Maria? O mundo ia mesmo acabar e ele não veria Maria. A chuva era grossa e forte. Num súbito clarão, Maria olhou pra ele. Da capa de um livro no chão. Era Machado de Assis. E o olho de Maria.

O corte na perna sangrava excessivamente. Ele não sabia o que doía mais, a perna ou o olho. “Vou morrer”, ele pensou. Todos iriam naquele dia. Mas ele não veria Maria. Maria que o traíra. Traíra?

A força da água era tanta que Eduardo sentiu que o teto desabaria em questão de minutos. Não havia nada na loja com o que ele pudesse estancar o sangue, era uma livraria. Haviam apenas livros. E um cofre. Ele não poderia entrar e se abrigar no cofre. Não caberia. Não caberia, nem viveria, nem veria Maria.

O livro cabia. Podia guardar um último tesouro, protegê-lo da desgraça da qual ele não podia proteger a si próprio. Podia também proteger as gerações futuras, que viessem após o caos, daquela dor. Aquela dor tinha um culpado. “É tudo culpa sua, Machado” ele disse. O sangue agora jorrava do ferimento. “Eu posso acabar com tudo isso.” Olhou para o livro. Maria olhou de volta. “Maria... você me traiu?”

Abriu o cofre. Pensou bem. O mundo merecia continuar na dúvida.

7 comentários:

  1. e no fim das coisas, quem acabou com o mundo foi um TEMPORAL

    risos

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  2. hahahaha
    nossa, nunca ri tanto com uma piada tão original

    risos.

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  3. é que tenho que manter a minha fama de mau.
    xD

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  4. linda de olhos verdes e ainda escreve bem
    BOM PARTIDO DA PORRA!
    gostei de te encontrar por aqui, minha querida
    e eu te disse que ai parar e ler tudo, não é?
    um beijo
    :D

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