segunda-feira, 11 de maio de 2009

Café com pão, feijão com arroz

Era casada há mais de 10 anos. Olhava as marcas do tempo sob seus olhos, que teimavam em aparecer refletidas na superfície escura do café na xícara. Fez a menção de levá-la aos lábios, mas logo sacudiu a cabeça e jogou o conteúdo na pia. Era a mesma coisa todos os dias. João era um homem bom e um bom marido. Tinham se casado um pouco por pressão da família e do tempo excessivo de namoro. Ela gostava dele, era um bom marido. Acordava-o todos os dias com o cheiro do café e do pão no fogo. Ele dava-lhe um beijo terno na testa e sentava-se à mesa. Conversavam sobre assuntos triviais, não tinham filhos. Ele lia o jornal e ela falava-lhe sobre a casa, o supermercado e as vizinhas.

Era casada há mais de 15 anos. O café era sempre preto e bem quente. As conversas sempre neutras e frias. Sua vida era vazia, ela pensou, vazia como a xícara em suas mãos. Não que quisesse ser como as vizinhas das quais falava ao marido. As brigas e os barracos que escutava da janela do quarto não pareciam nada com o tipo de vida que qualquer pessoa pudesse querer para si.Deveria ser feliz. Tinha uma casa simples, mas confortável. Tinha uma família querida com a qual almoçava aos domingos. Tinha um bom marido. Um bom marido. Ela sabia que não o amava. Sabia que ele jamais seria um galã de novela das oito que a salvaria de um incêndio, carregando-a nos braços fortes e fazendo-lhe juras ardentes de amor eterno. Nem era bem isso o que queria. Ora, o que mais ela poderia querer afinal? João não era nada disso. Mas era um bom marido.

Era casada há mais de 20 anos. Observava às vezes a filha da vizinha voltar pra casa com o namorado. Eles conversavam animadamente à porta de casa entre um beijo e um abraço apertado. A mocinha jogava a cabeça para trás com uma gostosa risada que parecia preencher todo o espaço. Ela gostava de observá-los e imaginar que sua vida um dia tinha sido assim, quando mais jovem. Onde então fora parar tudo aquilo? Os sonhos não realizados, as viagens nunca feitas, as promessas esquecidas. Ela acabou se casando com João e se acomodando à vida do jeito que esta vinha. O que mais ela achava que poderia esperar? Que o galã apagador de incêndios das oito surgisse de repente, adormecido no marido? Na verdade, queria era um homem que provocasse um incêndio dentro dela. Que a trouxesse para uma vida com mais emoção, mais sabor. Um sabor diferente do café amargo e escuro da xícara. Sem graça. Sua vida era sem graça, ela pensou. Pensou em sair dali, fugir. Encontrar um amor de verdade, que a fizesse estremecer por dentro e se arrepiar por fora. Que a levasse embora de repente, com o mundo como destino e a fizesse rir por horas até que a barriga doesse de não mais poder ser tão feliz.

Era casada há mais de 30 anos. Que idéia absurda, ora essa. Olhou para o relógio, viu se aproximar a hora do almoço. Levantou-se rapidamente, fez os pensamentos sumirem com um aceno brusco de cabeça e foi fazer o feijão.

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