domingo, 31 de maio de 2009

Quando acordei hoje de manhã, eu era a pessoa mais velha do mundo. Por isso mesmo achei tão curioso o fato de eu estar contando uma história. Acordei hoje sem saber direito em que ano nós estamos. Pouco importa também. Eu só espero que seja um tempo bem distante do qual eu vivia antes da doença. Tive um câncer que quase me matou. O poder da medicina moderna me manteve com uma vida vegetativa por todos esses anos e, graças a tudo isso é que hoje pude abrir os olhos para ser a prova viva do avanço tecnológico do ser humano.

Depois de conhecer um pouco do mundo e da época aos quais eu pertencia agora, constatei que não achava que fosse realmente eu a tal prova de avanço científico. As coisas estavam bem mudadas. A primeira delas que notei foi o frio ao sair do hospital. Esperava encontrar do lado de fora um calor mais aconchegante e vivo que a gelidez pálida da clínica. Mas não, parecia que eu continuava lá dentro, apesar do dia levemente ensolarado. Olhei para o céu, mas não havia sol. Pelo que me foi explicado, o sol não existia mais e fora substituído por enormes placas refletoras que me pareceram saídas de uma sessão de bronzeamento artificial gigante. O frio, eu viria a descobrir mais tarde, vinha de uma espécie de ar condicionado central que minimizava todo e qualquer calor proveniente do Efeito Estufa.

Quanta tecnologia. Eu devia ter sorte de sobreviver para conhecer uma época assim. Era tudo tão bonito. Sim, as pessoas eram todas bonitas, todas. Quase iguais, todas loiras, de olhos azuis e magras, minto, algumas tinham olhos verdes. Mas, acima de tudo, eram todos jovens. Ninguém no mundo passara dos 30 anos. Mais um avanço da tecnologia, que impedia que as pessoas envelhecessem, fazendo com que todos fossem jovens e saudáveis pro resto de suas vidas. Assim, absolutamente todos no mundo eram jovens. Exceto eu. Eu tinha 43 anos e era a pessoa mais velha do mundo.

Procurei por um lugar que eu reconhecesse, após tantos anos. Inútil. Todas as cidades do mundo eram iguais. Todos os vestígios que tornavam cada lugar único foram apagados. Todas as diferenças entre as culturas e nações se foram. E o mar? Era de um azul muito escuro. Quando coloquei os óculos, vi que era preto. Não era mar, era algo mais lucrativo: petróleo.

Durante o dia, descobri muitas outras coisas sobre aquele mundo. Tudo, absolutamente tudo era automatizado. Nem andar precisávamos mais. Alguns até tinham uma espécie de par de rodas no lugar de pés. Ninguém tinha tempo para uma coisa tão devagar quanto caminhar, precisavam trabalhar mais e mais rápido. Quase ninguém dormia, existiam pílulas para isso, para que não precisassem perder tempo. Aliás, agora, tudo vinha em cápsulas: a água escassa, a comida e até o oxigênio vinha em pílulas coloridinhas, pois este quase não existia mais no ar. As pessoas praticamente não tinham mais filhos, acho que viam televisão demais.

E eu, ao final do dia (que não escurecia),soube que tinha um estoque das cápsulas que me permitiriam viver por muito tempo ainda. Um suprimento quase eterno de pílulas de oxigênio. Pensei a respeito e caminhei lentamente até elas. Joguei todas pela janela, imaginando o que as pessoas pensariam ao ver milhões de pedacinhos coloridos caindo do céu.

Eles precisavam mais deles do que eu.

segunda-feira, 18 de maio de 2009

Ressaca

Eduardo levantou-se da cama naquela manhã de Novembro e calçou as pantufas de elefante. Caminhou até o banheiro e se olhou no espelho. A barba estava feita. Ele pensou se Maria gostaria dela assim. Escovou os dentes e depois usou um enxaguante bucal que comprara na noite anterior. Maria uma vez comentara que tinha um gosto bom. Fora difícil encontrar uma loja aberta para comprar o enxaguante. Naqueles dias, ninguém mais queria sair de casa ou abrir loja pra vender um cotonete que fosse. O comércio estava fechado por causa da chuva e do terror que tomou conta da população.

Era o fim do mundo, diziam os cientistas. E se os cientistas diziam, era certo. Ninguém ousaria discordar que as geleiras polares derreteram e o fim se aproximava cada vez mais, pelo céu e pelo mar. Em vão tentou-se construir abrigos, fortes e até arcas. Era pouco provável que suportassem a ira da chuva. A civilização ia submergir por completo e estava todo mundo desesperado. Quase todo mundo. Eduardo não ligava. Eduardo só ligava pra Maria. E Maria ultimamente não ligava muito pra Eduardo. Aliás, nem atendia quando ele ligava também. Teria Maria outra pessoa para quem ligar?

Não. Ela não podia ter outro. Sempre, desde sempre, para sempre tinham sido só eles. Não havia espaço para mais ninguém. Só Maria. E ele tentava perguntar “o que está acontecendo?”, “você está tão calada”, “você está tão distante” e “você não me ama mais?”. Nada. Maria tinha cólicas. Maria tinha trabalho. Maria tinha que se preocupar com os pais que, de tão apavorados, se mudaram para o iate da família.

Não. Não era isso. Ela tinha outro. Só podia ter outro. Eduardo tinha certeza de que ela o estava traindo. Só podia ser aquele ginecologista. Opa, era uma mulher. Ele estava sendo trocado por outra mulher! Maria, logo ela. Será? Será que ela tinha se mudado para o iate com o amante? Claro que sim, claro que fez. Maria o traíra. E todos sabiam. Todos. Mas isso não ficaria assim. Maria ia pagar caro.

Eduardo abriu a porta de casa e saiu sem guarda-chuva. A tempestade transformara a rua em caos e escuridão. Correu por algumas quadras pensando em Maria. Continuava a chover forte. Mais e mais. Imperdoável, Maria. A chuva aumentou rápido. Os trovões e os clarões ficaram mais intensos e freqüentes. Eduardo parou em frente a uma loja abandonada com a vitrine quebrada. Abrigo.

Ahh, Maria, Maria. Não faria tal crueldade. Tão meiga, tão doce, Maria.” Sem raciocinar, passou pelo buraco no vidro e cortou fundo a perna esquerda. Dor. Que dor poderia ser maior que essa, Maria? O mundo ia mesmo acabar e ele não veria Maria. A chuva era grossa e forte. Num súbito clarão, Maria olhou pra ele. Da capa de um livro no chão. Era Machado de Assis. E o olho de Maria.

O corte na perna sangrava excessivamente. Ele não sabia o que doía mais, a perna ou o olho. “Vou morrer”, ele pensou. Todos iriam naquele dia. Mas ele não veria Maria. Maria que o traíra. Traíra?

A força da água era tanta que Eduardo sentiu que o teto desabaria em questão de minutos. Não havia nada na loja com o que ele pudesse estancar o sangue, era uma livraria. Haviam apenas livros. E um cofre. Ele não poderia entrar e se abrigar no cofre. Não caberia. Não caberia, nem viveria, nem veria Maria.

O livro cabia. Podia guardar um último tesouro, protegê-lo da desgraça da qual ele não podia proteger a si próprio. Podia também proteger as gerações futuras, que viessem após o caos, daquela dor. Aquela dor tinha um culpado. “É tudo culpa sua, Machado” ele disse. O sangue agora jorrava do ferimento. “Eu posso acabar com tudo isso.” Olhou para o livro. Maria olhou de volta. “Maria... você me traiu?”

Abriu o cofre. Pensou bem. O mundo merecia continuar na dúvida.

segunda-feira, 11 de maio de 2009

Café com pão, feijão com arroz

Era casada há mais de 10 anos. Olhava as marcas do tempo sob seus olhos, que teimavam em aparecer refletidas na superfície escura do café na xícara. Fez a menção de levá-la aos lábios, mas logo sacudiu a cabeça e jogou o conteúdo na pia. Era a mesma coisa todos os dias. João era um homem bom e um bom marido. Tinham se casado um pouco por pressão da família e do tempo excessivo de namoro. Ela gostava dele, era um bom marido. Acordava-o todos os dias com o cheiro do café e do pão no fogo. Ele dava-lhe um beijo terno na testa e sentava-se à mesa. Conversavam sobre assuntos triviais, não tinham filhos. Ele lia o jornal e ela falava-lhe sobre a casa, o supermercado e as vizinhas.

Era casada há mais de 15 anos. O café era sempre preto e bem quente. As conversas sempre neutras e frias. Sua vida era vazia, ela pensou, vazia como a xícara em suas mãos. Não que quisesse ser como as vizinhas das quais falava ao marido. As brigas e os barracos que escutava da janela do quarto não pareciam nada com o tipo de vida que qualquer pessoa pudesse querer para si.Deveria ser feliz. Tinha uma casa simples, mas confortável. Tinha uma família querida com a qual almoçava aos domingos. Tinha um bom marido. Um bom marido. Ela sabia que não o amava. Sabia que ele jamais seria um galã de novela das oito que a salvaria de um incêndio, carregando-a nos braços fortes e fazendo-lhe juras ardentes de amor eterno. Nem era bem isso o que queria. Ora, o que mais ela poderia querer afinal? João não era nada disso. Mas era um bom marido.

Era casada há mais de 20 anos. Observava às vezes a filha da vizinha voltar pra casa com o namorado. Eles conversavam animadamente à porta de casa entre um beijo e um abraço apertado. A mocinha jogava a cabeça para trás com uma gostosa risada que parecia preencher todo o espaço. Ela gostava de observá-los e imaginar que sua vida um dia tinha sido assim, quando mais jovem. Onde então fora parar tudo aquilo? Os sonhos não realizados, as viagens nunca feitas, as promessas esquecidas. Ela acabou se casando com João e se acomodando à vida do jeito que esta vinha. O que mais ela achava que poderia esperar? Que o galã apagador de incêndios das oito surgisse de repente, adormecido no marido? Na verdade, queria era um homem que provocasse um incêndio dentro dela. Que a trouxesse para uma vida com mais emoção, mais sabor. Um sabor diferente do café amargo e escuro da xícara. Sem graça. Sua vida era sem graça, ela pensou. Pensou em sair dali, fugir. Encontrar um amor de verdade, que a fizesse estremecer por dentro e se arrepiar por fora. Que a levasse embora de repente, com o mundo como destino e a fizesse rir por horas até que a barriga doesse de não mais poder ser tão feliz.

Era casada há mais de 30 anos. Que idéia absurda, ora essa. Olhou para o relógio, viu se aproximar a hora do almoço. Levantou-se rapidamente, fez os pensamentos sumirem com um aceno brusco de cabeça e foi fazer o feijão.

domingo, 3 de maio de 2009

Xadrez vermelho


Era um dia comum de Junho, verão na Holanda. A rua tranqüila do bairro de Amsterdã onde eu trabalhava respirava sua calma habitual, pontuada pelos bondinhos que passavam de cinco em cinco minutos. Enquanto eu observava o movimento distraída, a caneta em minhas mãos caiu no chão atrás do balcão. Me abaixei para apanhá-la e não vi quando ele chegou. A loja estava vazia, escutei apenas o sininho da porta oscilando quando esta se abriu. O homem que entrara era alto e careca. Vestia um terno cinza com um chapéu na cabeça. Porém, a estrela amarela de exatas seis pontas na lapela denunciava-lhe a origem.

Olhando distraidamente para os objetos nas prateleiras sem demorar-se em nenhum, acabou por ficar frente a frente a mim. Antes que eu pudesse perguntar se poderia ajudá-lo, ele fixou o olhar decidido na estante exatamente atrás de mim e com um sorriso contido, pediu o caderno xadrez vermelho, último que restou na loja.
Eu me lembro exatamente do dia em que aquele carregamento de cadernos para diário chegou. Eram todos muito parecidos, quadradinhos, vermelhos. Porém, um chamou a minha atenção. Seria um caderno como os outros, se não fosse por um pequeno detalhe: seu fecho era simples, sem chave. Não sei porque me apeguei ao livrinho. Talvez porque me sentia como ele, naqueles tempos difíceis de 1942, um patinho diferente, fora do contexto. Sempre tive horror a guerras. E aquele era um caderninho diferente dos outros, que não guardaria segredo, não se calaria ante aos absurdos que aconteciam pelo país inteiro.

Pois bem, naquele momento em que vendi o caderninho para o homem da estrela no peito senti uma pontinha de dor pela separação. Não sei o que pensei na hora, mas quando ele pediu que embrulhasse pra presente, sem conseguir resistir, perguntei: “É para sua esposa?” Ele apenas sorriu contido mais uma vez e disse: “Para a minha filha caçula. Faz treze anos amanhã” Ahh, que saudade dos meus treze anos! “Ela gosta de escrever?” Novamente perguntei, precisava saber o destino do pequeno caderninho. “Sim” o homem respondeu “ela quer ser escritora ou jornalista”.

Depois que ele saiu, peguei-me imaginando o grande futuro que a aniversariante teria. Cresceria bem na companhia do livrinho e depois que acabasse a guerra, faria sucesso escrevendo sobre ela, narrando as tragédias sofridas pelo seu povo. Uma grande escritora. Uma grande jornalista, certamente. E aquele diário ficaria famoso. Os primeiros escritos de uma grande jornalista, no apogeu da Segunda Guerra Mundial. Eu a veria numa grande livraria, compraria um dos seus livros e a pediria que o autografasse para mim. E ficaria imensamente feliz em saber que eu vendi o seu primeiro diário.

Se naquela época eu soubesse o quando as coisas parecem tão mais bonitas quando as imaginamos... o diário ficou famoso, a autora ficou famosa. Eu só não imaginei que não ficaria feliz em saber o motivo pelo qual todo mundo hoje conhece aquele pequeno caderninho xadrez vermelho.