quarta-feira, 29 de abril de 2009

Parada

Lembrava-se tão bem, como se tivesse sido ontem. Seu primeiro dia de aula na Faculdade tinha acordado manso e preguiçoso há muitas horas atrás. Samara levantou-se da nova cama esfregando os olhos com os pulsos. Dormira mal, não tanto pela ansiedade com a nova cidade, a nova vida. A dor que lhe esmagava o peito com a mão forte situava-se entre a língua e o esôfago: a bolha espessa da saudade tomava conta de todo o espaço da garganta, competindo com o ar. Sem maiores melodramas, forçou-se a sair de baixo dos cobertores para encarar a tarde pálida e fria.

A tarde não se esforçou em demorar um pouco mais que a noite e a manhã que para Samara, passaram como minutos. Puta que pariu. Primeiro dia e vou me atrasar, ela pensou. Saiu de casa ainda com preguiça, mas a ansiedade e o nervosismo do atraso começaram a fazer efeito sobre a velocidade do seu corpo e espírito. A inércia a levou até a estação de metrô em alguns minutos. Entrou no trem completamente desperta.

As estações avançaram acompanhando sua impaciência. Quinze para as quatro, que merda. “Terminal Central: acesso à Rodoviária do Plano Piloto. Solicitamos a todos que desembarquem”. Caminhou rapidamente para a saída. Ao descer as escadas, já corria. Box 13, linha 110, Box 13, linha 110, Box 13, linha 110... Ai, e essas pessoas que não saem da frente, bosta! Nota mental: parar de xingar tanto ou os brasilienses vão me achar mal educada. Na Bahia, quase nada é palavrão. Ninguém vai se escandalizar se você disser “vai tomar no cu na casa do caralho seu filho da puta”. Aliás, vão achar qualquer coisa normal, a não ser que você diga “desgraça”. Aí é um tal de “Deus é mais!” e “Bate na boca, menino, que atrai!”

Pois é, Eram quatro horas. O horário exato em que a quilômetros dali, numa sala de aula num tal de ICC norte, a aula de Samara estaria começando. E ela estava ali, parada, olhando para uma fila que já dobrava a esquina da Pastelaria Viçosa. E agora José? Não havia muito o que fazer, além de ficar irritada... e parada.

De repente, vestido numa calça marrom velha, sapatos sociais gastos e uma camisa quadriculada em que faltavam dois botões, ele surgiu. Na verdade, mais brotou do que surgiu, num lugar onde antes só havia um balcão de vendedor ambulante. Olhando de cima a baixo a figura obviamente estudantil de Samara, sorridente, ele perguntou: “UnB?” “Como é?” ela retrucou, despertada do transe provocado pela falta de três dentes seguidos no sorriso do velho. “UnB?” Mas dessa vez não era com ela, e sim com a moça perfumada e loira atrás dela na fila. Enquanto Samara refletia sobre a necessidade daquele salto para ir à faculdade, o homem da camisa quadriculada dirigiu-se a ela mais uma vez: “É pra UnB que tu vai, né?” “É” ela respondeu sem pensar. “Então fechô, vamo lá” ele disse. “Não, não, vou esperar” Samara retrucou instintivamente na defensiva. “Primeiro dia?” “Quê?” “É seu primeiro dia, né? Ainda tem muito o que aprender, isso aqui é matéria obrigatória já!” A moça loira então dirigiu-se a Samara: “Vamos com a gente”. Em 3 segundos, Samara teve tempo de analisar suas possibilidades: “Bom, já estou muito atrasada... Deve ser de boa essa carona aí. Se não for, não tenho mais que 5 reais de qualquer maneira... agora... se for estupro, essa patricinha aí é mais bonita e vai se ferrar primeiro, acho que dá tempo de eu correr. Ok, então vamos lá.” E ela foi.

Dirigiram-se a um Fiat Uno então, o homem de quadriculado, a loirinha, dois rapazes de óculos e Samara. “Merda, sentei no meio! Agora não dá pra fugir pela janela...” E lá se foram pelas quadras da Asa Norte. Lentamente, Samara observou a garota loira enfiar a mão dentro de sua bolsa cor de rosa da Kippling, sobre o colo. Ai meu deus! Não acredito que essa mulher vai tirar uma arma daí de dentro! Mas ela não tinha nem cara de 171, não era possível que em Brasília até bandida era loirinha cor de rosa com carinha de fofa! Mas eis que ela tirou não um revolver, mas uma nota de dois reais que entregou ao motorista. “Moço, vou ficar nos pavilhões” disse a vozinha doce. Imitando-a, Samara entregou dois reais ao motorista, que perguntou para onde ela iria. “Ala Sul... quer dizer, norte!” E tudo correu bem.

Samara conseguiu chegar ao local da aula sã, salva e virgem! Feliz, apesar do atraso e da cara de “Ohh! Então essa é a caloura que se chama Samara?!” que os novos coleguinhas fariam. Entrou na sala o mais discretamente que conseguiu e assistiu metade de uma aula ininteligível. Deprimente, para quem tinha enfrentado tanta coisa para estar ali. E não estou falando de vestibular. Ah, doce a desgraça dos calouros ingênuos. Era aula trote.

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